Dr. Pimenta
A lei da ficha limpa continua dando margem a interpretações contraditórias. Por isso mesmo, identificam-se posições extremadas, quer da parte dos que a apoiam, quer dos que a rejeitam. Os primeiros mal escondem seu desdém pelo estado de direito e as consequências que o acompanham. Desse modo, reclamam, sempre que um magistrado sentencia favoravelmente ao candidato que se pretendia ver fora da disputa. Os que repudiam a lei simplesmente invocam princípios alheios ao direito eleitoral, talvez em grande medida por absoluta ignorância jurídica. Sem contar, é claro, com os interesses de que são portadores.
Por mais que nos desagrade e pareça lesivo à democracia, não podem os magistrados ser tolhidos do direito de interpretar a norma da maneira que lhes parecer justa e correspondente ao que está nos autos. Nem lhes pode ser exigida decisão que extrapole o requerimento da parte. É o que se conhece como decisão extra petita, a que vai além do que foi pedido.
Se é compreensível a impaciência do eleitorado brasileiro, tantas as fraudes a que está sujeito, não o é sacrificar prerrogativas do Poder Judiciário. Este, no chamado estado de direito, tem papel talvez mais importante que qualquer dos demais poderes constituídos. Afinal, é lá a instância onde serão resolvidos os conflitos, individuais ou coletivos, públicos ou privados. Mesmo os que se estabelecem entre os outros dois poderes. O contrário seria regime de arbítrio, de que a experiência manda afastarmo-nos o mais que for possível.
Mesmo eventuais desvios cometidos por membros da magistratura não devem afetar o Poder. A cobrança, portanto, deverá buscar a coibição de irregularidades ou a apenação dos que as cometerem. Nesse caso, é à figura do magistrado, não à instituição, que deverá dirigir-se a ira boa do cidadão.
Os que se sentem prejudicados com a lei da ficha limpa querem, a todo custo, caracterizar o impedimento à candidatura como medida penal. A conseqüência é o argumento pueril porque incabível de que a lei não retroage para prejudicar. Compreende-se o interesse de muitos dos barrados das eleições em fugir ao alcance da lei. Afinal, desde quando a imunidade passou a ser vista como impunidade, deter um mandato é providência salvadora.
Não pode ser admitida, porém, é a confusão entre normas do Direito Penal e normas eleitorais. O princípio da irretroatividade da lei diz respeito às normas penais, não à regulamentação do processo eleitoral.
É lição do Direito Penal, cuja fundação é atribuída a um aristocrata italiano: não há pena sem crime; não há crime sem lei (que o tipifique).
Isso quer dizer que lei penal posterior à ação agora tida por delituosa não pode arrolar como delinquentes os produtores de ação anterior à vigência da lei. Naquele instante, não havia a regra jurídica tipificadora da conduta, posteriormente, tida como criminosa. Não estava na lei a conduta de que se fala; quem a praticou, portanto, não terá praticado um delito. Se não houve delito, não há que falar em pena. O mesmo não pode se estendido à interpretação da lei eleitoral. Muito menos a exigência de idoneidade dos candidatos é coisa de somenos.
A ocupação dos cargos públicos está sujeita a regras específicas, dependendo das atividades e responsabilidades neles compreendidas. Assim, dos médicos é exigido o diploma de curso superior de Medicina; dos engenheiros, dos advogados, dos odontólogos, dos físicos, dos professores, dos jornalistas, infelizmente, não mais - enfim, de ampla gama de profissionais, exige-se o diploma correspondente.
Fora do serviço público, igualmente, são feitas exigências legais a candidatos a um financiamento, por exemplo. Basta faltar a um dos interessados certidões negativas dos cartórios de registro civil de títulos e documentos, para que ele se veja alijado do processo. Também as instituições privadas se utilizam dos serviços do Serasa e CDL, como forma de avaliar a capacidade de pagamento dos devedores. Diante disso, como amesquinhar o processo eleitoral, fazendo-o menos importante que a compra de uma geladeira?
A lei da ficha limpa foi, inegavelmente, uma conquista da sociedade brasileira. Fazê-la obedecer é tarefa do Poder Judiciário. Nem por isso devem os cidadãos silenciar. Ao contrário, toda atenção que for dada à conduta dos magistrados será pouca. É possível que muitos deles até se sintam prestigiados, quando conseguem ouvir o que Ulysses Guimarães chamava "a voz das ruas".
O ideal é que, nesse pleito que tivemos, embora temos segundo turno para governador em algumas capitais e para o cargo de presidente da República, nós negássemos o nosso voto aos que, no seu próprio entendimento, têm suja sua ficha - sua vida, quem sabe? Tenha certeza de que isso não é tão difícil de se fazer.